Quando você pega um ônibus ou um revendedor faz uma compra de mercadorias, é possível que esteja usando um banco sem perceber. Em um momento em que está cada vez mais fácil viabilizar a oferta de serviços financeiros, empresas de diferentes setores e portes têm expandido suas atividades para a área bancária visando atender sua cadeia de valor. Os bancos embutidos (ou “embarcados”, segundo o jargão do setor) na jornada dos clientes têm potencial para fortalecer o negócio como um todo, mas, em meio à disseminação de iniciativas, a capacidade de oferecer serviços realmente adequados ao público-alvo é crucial para definir quais projetos irão adiante e quais morrerão na praia.
O crescimento dessas iniciativas se enquadra em uma tendência chamada “embedded finance”, ou “finanças embarcadas”. São bancos que nascem dentro de uma empresa não financeira com objetivo de apoiar o negócio principal ao qual estão ligados. A ideia pode ser corrigir ineficiências na cadeia ou tirar proveito de vantagens competitivas, por exemplo.
Pix e outras inovações regulatórias agilizam e barateiam os processos de estruturação dos serviços financeiros O movimento não é novo. No varejo, há décadas as empresas encorpam as suas atividades com a oferta de crédito aos clientes, por exemplo. A diferença é que, conforme avançam mudanças regulatórias que tornam mais simples e barato oferecer serviços financeiros, crescem também as chances de novos modelos de negócios se desenvolverem.
A Transdata, por exemplo, atua há 30 anos na área de meios de pagamento para transporte e, há cerca de dois anos, iniciou o projeto do Sigo Bank, com o objetivo de oferecer serviços financeiros a sua base de clientes integrados ao sistema de transporte público. No ano passado, começaram a ser abertas contas para pessoas jurídicas e, agora, tem início o processo para pessoas físicas. A iniciativa começou pela cidade de Jarinu (SP) e será expandida para Santo André (SP) e Araucária, na região metropolitana de Curitiba (PR).
A ideia é que, por meio do mesmo aplicativo, o passageiro possa pagar o transporte público e consultar saldo e itinerários, por exemplo, mas também tenha acesso a outros serviços, como pagamento de contas, recarga de celular e ofertas de crédito.
Mais produtos devem ser agregados com o tempo, como a oferta vale-alimentação ou refeição. No futuro, o Sigo quer atender não apenas as cidades em que a Transdata já atua – a empresa atende 450 cidades com soluções como de bilhetagem eletrônica e rastreamento de frota -, mas também prestar serviços para outras companhias do setor.
Um diferencial do projeto está na facilidade de acesso ao usuário, diz Paulo Tavares, CEO da Transdata. A base de clientes já inclui empresas de transporte público, as que compram vale-transporte para os funcionários e o usuário final do serviço. Além disso, pode oferecer um aplicativo que as pessoas realmente utilizem com frequência. “As pessoas abrem várias contas digitais e depois não usam. Nós
conseguimos ter um relacionamento diário com quem anda de ônibus.”
Tudo será feito por meio de parceiras e pelo modelo de “banking as a service” (BaaS), ou seja, o Sigo Bank não precisa de licenças específicas para iniciar a oferta de serviços financeiros. Mas, em termos regulatórios, os formatos variam. Há empresas que optam por tirar licenças próprias junto ao Banco Central (BC), como de instituição de pagamento ou de sociedade de crédito direto (SCD).
Na indústria, a Natura &Co lançou oficialmente sua plataforma de serviços financeiros há cerca de um ano. A &Co Pay começou com o foco de atender parte do 1,2 milhão de consultoras Natura e, com o tempo, expandir os serviços para mais 1,3 milhão de revendedoras Avon, além de alguns fornecedores, como cooperativas.
Hoje, já são 470 mil contas digitais, diz José Manuel da Silva, vice-presidente de serviços financeiros da Natura &Co América Latina.
A primeira vertical do projeto é a de subadquirência (“maquininhas”), que, de cara, transforma o que era uma despesa em uma receita para o ecossistema da companhia, explica o executivo. Há ainda uma vertente de crédito e outra voltada ao relacionamento com clientes, onde estão englobadas iniciativas como de fidelidade e educação financeira. Hoje, a empresa trabalha com crédito mercantil, mas com
uma licença de SCD a ideia é expandir o leque. “Queremos explorar os 50 tons de Pix”, brinca Silva, se referindo às possibilidades de parcelamento via pagamento instantâneo.
Atualmente, os serviços estão sendo oferecidos majoritariamente às representantes da Natura, mas alguns testes estão em execução na Avon. Na frente de adquirência, a companhia está agora entrando também na Argentina. Além disso, são atendidas 38 cooperativas na região amazônica. “Não temos uma fintech concorrente no mercado”, diz o vice-presidente. “As consultoras que usam os nossos produtos e as nossas trilhas de educação financeira são até 15% mais produtivas do que antes.”
Os projetos podem focar em diferentes elos da cadeia de valor. No caso do Grupo Real, distribuidor atacadista de peças e acessórios automotivos, a ideia é atender fornecedores, clientes e seus funcionários por meio do PERbank, banco digital criado há pouco mais de um ano. “É um mercado muito padronizado e vimos a oportunidade de nos diferenciarmos por meio dos serviços financeiros. O setor de
autopeças é ainda muito carente de crédito”, explica Ricardo Eguchi, CEO e cofundador do PERbank.
Atualmente, o Grupo Real tem mais de 25 mil clientes. “Então, já tínhamos uma base sólida de informação sobre o mercado. E temos bons pagadores com a empresa que talvez não sejam tão bons com o mercado. Isso é valioso porque conseguimos dar crédito de forma mais eficiente”, acrescenta.
Hoje, o PERbank trabalha com três frentes de serviços: de meios de pagamento (Pix e adquirência), crédito (para empresas e seus funcionários) e fidelização, com um programa de “cashback” de empresas para empresas.
“No programa de fidelização, o cliente tem a maquininha gratuita com taxas menores e 3% que voltam para ele usar em recompra na Real”, explica Eguchi. No futuro, a ideia é diferenciar percentuais de ‘cashback’ conforme o nível de parceria e ampliar as possibilidades de uso dos recursos. Atualmente, o banco tem aproximadamente 6 mil clientes e R$ 200 milhões de crédito performado desde maio do ano passado.
O que esses modelos têm em comum é que o banco deixa de ser algo isolado, para ser algo “embutido” em outra atividade, explica Carlos Netto, CEO da Matera, empresa de desenvolvimento de tecnologia para serviços financeiros. O Pix e outras inovações regulatórias agilizam e barateiam os processos de estruturação dos serviços financeiros por empresas de outros segmentos, acrescenta.
Abrir uma vertical financeira, no entanto, não é algo que faça sentido para qualquer empresa. Primeiro, é preciso analisar se há uma cadeia a ser atendida. Segundo, é preciso ser capaz de oferecer serviços adequados à jornada do seu público. “É necessário entender o que aquela comunidade valoriza, as necessidades podem ser diferentes para o ramo de beleza e de refrigerantes, por exemplo”, diz Netto.
Além disso, em um sistema financeiro cada dia mais competitivo, é preciso “fugir da tentação” de tentar competir com um banco ou uma fintech “pura”, com serviços gerais. “O diferencial é o de servir a empresa-mãe”, explica o CEO da Matera.
Do ponto de vista do usuário dos serviços, também há questões a ser consideradas. Para o professor e coordenador do Núcleo de Estudos Avançados de Regulação do Sistema Financeiro Nacional (NEASF) da FGV Direito Rio, João Manoel de Lima Junior, alguns pontos precisam ser observados para evitar práticas anticoncorrenciais ou inseguras na oferta desses produtos.
A companhia que está oferecendo os serviços financeiros não pode criar mecanismos que “travem” os outros elos da cadeia. Ou seja, não pode, direta ou indiretamente, obrigar fornecedores e clientes a contratar os seus produtos. Além disso, é preciso garantir a solidez das instituições que estão por trás da oferta dos produtos bancários, seja qual for o modelo regulatório adotado.
Por Mariana Ribeiro — De São Paulo
24/08/2022 05h02 · Atualizado há 4 horas